DURA REALIDADE

Motoboys passam sede e fome e arriscam a vida, diz estudo

Pesquisa realizada pela Unicamp revela situação extremamente precária das condições laborais enfrentadas por esses trabalhadores, a maioria jovem

Luis Eduardo de Sousa/ [email protected]
02/05/2024 às 08:30.
Atualizado em 02/05/2024 às 08:30
Entregador de aplicativo monta em sua moto para mais uma viagem a partir da Avenida Francisco Glicério no Centro de Campinas; maioria dos entregadores é do sexo masculino (90%) e 54% se declara negra (Kamá Ribeiro)

Entregador de aplicativo monta em sua moto para mais uma viagem a partir da Avenida Francisco Glicério no Centro de Campinas; maioria dos entregadores é do sexo masculino (90%) e 54% se declara negra (Kamá Ribeiro)

Uma pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) revela que os entregadores de aplicativos enfrentam longas jornadas de trabalho marcadas por fome, desidratação, estresse, pouco sono e riscos de acidentes. O estudo, realizado por pesquisadores das áreas de saúde e sociologia no ano passado, entrevistou 200 entregadores e aplicou exames para avaliar suas condições de trabalho. Os resultados são alarmantes, destacando uma situação de "aprisionamento" de jovens trabalhadores com pouca ou nenhuma perspectiva.

Segundo a pesquisa, 65% dos entrevistados já haviam sofrido algum acidente durante o trabalho. Desses, um quarto precisou ficar mais de seis meses em repouso, sem poder trabalhar. O perfil desses trabalhadores mostra que a maioria é jovem: 43,9% têm até 29 anos, 51,9% estão entre 30 e 49 anos, e apenas 4,2% têm mais de 50 anos.

Dos entrevistados, 38% afirmaram que bebem menos de um litro de água por dia. A diretora-executiva de Direitos Humanos da Unicamp, médica Silvia Santiago, uma das responsáveis pela pesquisa, explica que a rotina intensa de trabalho impede que eles mantenham uma hidratação adequada. "Eles nos relatam que na rua não há locais adequados para urinar, então, para evitar essa necessidade, diminuem o consumo de água. Além disso, não conseguem transportar água para o dia todo ou mantê-la fresca", afirma. O mesmo percentual relatou sentir sede durante o trabalho.

Quase metade dos motoboys afirmou não realizar três refeições por dia, trabalhando frequentemente com fome, o que pode levar à desnutrição, irritabilidade e estresse.

Os dados também mostram que a maioria dos entregadores é do sexo masculino (90%) e 54% se declara negra. Cerca de 43,7% dos trabalhadores afirmam trabalhar mais de 60 horas por semana, enquanto 28,6% trabalham até 44 horas semanais. Entre aqueles que trabalham mais de 60 horas por semana, 20% chegam a trabalhar até 80 horas.

Além disso, 40% dos entregadores trabalham sete dias por semana, enquanto 37% tiram apenas um dia de folga por semana.

INSALUBRIDADE

Em 2021, a Unicamp identificou uma preocupação significativa com a hidratação entre os motoboys. Durante uma forçatarefa contra a covid-19 destinada a apoiar essa categoria, considerada mais vulnerável ao vírus, profissionais de saúde perceberam que muitos entregadores não apresentavam sangue ao realizar exames, indicando um quadro severo de desidratação.

"Nós realizamos esse mutirão, e houve um consenso entre enfermeiros e médicos de que estava difícil coletar o sangue. Perguntamos a eles sobre a ingestão de água, e para nossa surpresa, já naquela época os números eram alarmantes", relata Silvia Santiago, diretoraexecutiva de Direitos Humanos da Unicamp.

A pedido do Ministério Público de São Paulo (MPSP), a universidade começou a pesquisar as condições de trabalho dos motoboys em Campinas. O estudo incluiu exames laboratoriais, aferição de pressão arterial e teste de covid-19, além de questionários sobre saúde e trabalho.

"Infelizmente, o que observamos no estudo do ano passado em relação a 2021 é um agravamento das questões. Notamos, por exemplo, uma grande incidência de alterações na pressão arterial entre indivíduos jovens, que não deveriam estar nessas condições de saúde", afirma Santiago. Na faixa etária até 29 anos, 36% apresentaram medidas de pressão alteradas. Já entre 30 e 49 anos, esse número foi de 55%. Pressões acima de 14/9 são consideradas hipertensão.

As causas dessas condições incluem alimentação inadequada e poucas horas de sono, devido às longas jornadas de trabalho. "Eles não se alimentam adequadamente e, quando comem, não é de forma saudável. Além disso, dormem pouco ou mal, devido à tensão e ao cansaço", explica Santiago.

Vinicius Ribeiro da Costa, de 22 anos, trabalha como motoboy há mais de um ano. Ele destaca o medo de assaltos, a sede e a má alimentação como as principais dificuldades. "Nunca trabalhei antes, então essa foi minha primeira fonte de renda. Considero que não vou conseguir um emprego que pague o que ganho na rua. Há riscos de assalto e acidentes no trânsito, além de eu não beber muita água nem me alimentar bem. Mas preciso trabalhar", relata Vinicius, que ganha cerca de R$ 230 por dia e trabalha todos os dias da semana, especialmente nos fins de semana, quando há maior volume de entregas. Ele não pretende abandonar o trabalho como motoboy em breve.

Em contrapartida, Leonardo Aparecido, de 32 anos, planeja deixar as ruas nos próximos seis meses. Ele começou a trabalhar com entregas devido à instabilidade no mercado de trabalho. O jovem afirma ganhar mais como entregador do que em um emprego formal, mas ressalta a falta de garantias.

"Eu ganho bem, embora trabalhe muito. As jornadas são de 10 a 12 horas. Mas é um trabalho difícil. Às vezes, esquecemos de parar para beber água ou comer, e acabamos comendo na rua mesmo e levando como dá", conta Leonardo, que ganha valores similares aos de Vinicius.

DEBATE

Uma pesquisa realizada pela Unicamp traz à tona questões importantes sobre as relações de trabalho entre condutores e plataformas de entrega e transporte.

Dados do Painel Infosiga, do governo do Estado de São Paulo, mostram que Campinas registrou 80 óbitos de motociclistas ou garupas em 2023. Até março de 2024, já foram contabilizados 13 óbitos. Embora o painel não especifique quantos desses casos envolvem motoboys, é sabido que eles enfrentam maior exposição, pois passam muito mais tempo nas ruas do que aqueles que usam motocicletas apenas para se deslocar.

Silvia Santiago, diretora-executiva de Direitos Humanos da Unicamp, destaca a preocupação com as condições em que esses trabalhadores, majoritariamente jovens, estão envelhecendo.

"Eles não se alimentam adequadamente, não se hidratam e trabalham longas horas sem tempo para lazer, estudo ou capacitação profissional. Isso os mantém focados no trabalho, pois perder o foco significa perder dinheiro. É uma relação de aprisionamento na qual o trabalhador se submete por falta de opções", afirma.

Santiago também ressalta o custo social dessa situação. "É importante considerar o impacto econômico para o estado, que assume todos os custos quando um motoboy sofre um acidente e precisa de internação, deixando uma família desamparada. Enquanto isso, as empresas colhem lucros sem assumir obrigações com esses trabalhadores. Não se trata de apontar vilões, mas de entender as novas relações de trabalho e a saúde desses trabalhadores", conclui.

Os próximos estudos do grupo devem abordar questões de saúde mental dos entregadores, com resultados sobre estresse, ansiedade e outras complicações psicológicas relacionadas ao trabalho previstos para divulgação em breve.

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